Ninguém Leva a Mal
A Lua já espreita por entre as nuvens escuras que ameaçam estragar as festividades. Milhares de caras mascaradas desfilam pela cidade: a noite perfeita para um cabrão sair à rua sem dar nas vistas. O único que repara em mim é um mendigo, que elogia a máscara antes de cravar uma moeda. Abro a carteira cor de camelo “porque hoje é Carnaval, e até elogiaste o meu disfarce.” Entro num bar quase vazio e peço uma cerveja, da qual metade cai às mãos de uma loira que veio de turista nórdica e esbarra contra mim assim que viro costas. Um bom presságio, sem dúvida. Saio do WC frustrado, após esforços infrutíferos para tirar a nódoa, e dirijo-me novamente à rua.
Aproximo-me do careca cúbico à porta do Plano B, sondando pelo preço da entrada. Ele olha-me de alto a baixo com desprezo, virando-se de seguida para um grupo de cinquentões com aspeto fino. Depois de lhes abrir passagem com uma cordialidade exagerada, responde sem olhar para mim:
“Pela entrada são dez paus. E tens de tirar a máscara.”
Pergunto se exigem o mesmo no resto do ano, enquanto dou meia-volta. Esta máscara em particular é o meu único disfarce: faz tão parte de mim como o sobretudo azul-marinho, as botas gastas ou a camisola branca agora decorada em tons de cevada.
Chego ao Gare, mas o chefe de estação diz-me que o comboio ainda está a aquecer os motores. E eu que só queria aquecer o meu.
“A hora do capeta ainda não está sobre nós.”
Vagueio as ruas à procura de calor e bebida. Encontro um pequeno tasco mexicano com aspeto familiar, quase vazio, e peço uma cerveja ao som de um hermano com voz suplicativa:
“Mi amor, mi amor … contigo soy feliz!”
É pouco provável, mas pelo menos tenho snacks. Dou um gole de cerveja enquanto o hermano faz a sua melhor imitação de ave amazónica. Encostado a um beco, do outro lado da rua, vejo uma malagueta do tamanho de um homem de face serena e indiferente, com aquele aborrecimento típico de quem sabe mais do que aquilo que diz.
“Hoje és o meu único amigo.”
Silêncio. Pergunto quantos já desabafaram com ele antes, em noites de bebedeira, estudando a textura da tinta roxa sobre a parede velha. Ao repetido silêncio do meu novo amigo respondo apenas com as minhas costas.
De volta à estação, só preciso que este comboio arranque em breve. O baixo vil do sistema de som do bar ao lado faz estremecer o vidro das janelas antigas, enquanto as gotas frias começam a salpicar-me o pescoço. O meu transe molhado é interrompido abruptamente pelo som de assobios vindos do quarteirão ao lado, que explodem no céu cinzento-escuro em tons de vermelho, verde e azul.
“Todos a bordo!”
Procuro o meu assento com vista para o bar enquanto a repetitiva batida eletrónica faz estremecer as minhas entranhas. Observo os enormes tubos de ferro no teto, que disparam luzes vermelhas sobre os passageiros que vão tomando os seus lugares, como os olhos de um dragão de três cabeças que fita as vítimas indefesas, momentos antes de atacar.
Desvio as minhas atenções para o bar e questiono-me se a loira simpática me vai reconhecer. É certo que só estive cá uma vez com a minha máscara de pele, mas a forma como me olhou assim que me viu entrar parece indicar que, de alguma forma, sabe quem eu sou. E com isso já sabe mais do que eu. Caminho diretamente a ela, que me cumprimenta com um sorriso:
“Vodka Red Bull?”
Respondo que sim e devolvo-lhe um sorriso que ela provavelmente não consegue ver. Agarro na bebida e lanço-me à pista meia cheia. Entre um grupo de loiras frenéticas reparo numa espanhola elegante, com pele clara e cabelo castanho preso numa trança que baloiça na nuca sedutora. Por momentos, deixo-me imaginar como seria beijar aquele pescoço. Em cada bochecha esbelta, três riscos finos parecem ter sido desenhados por algum artista no seu momento mais inspirado. A sobriedade da máscara da espanhola, que contrasta com a minha e com o ambiente decadente em que nos conhecemos. Oiço as amigas chamarem-lhe “Cláudia”, e eu chamo-a com a mente. Vejo-a olhar para mim apenas por um instante, mas é o suficiente. Fico a dançar enquanto a observo, reparando em como o corpo dela se orienta na minha direção. Trocamos novos olhares e eu falo diretamente ao subconsciente dela:
“Aproxima-te de mim.”
Olha para mim outra vez enquanto arrasta o corpo subtilmente, cada passo da dança discreta representa um propósito de folia e excitação. Deixa-se pousar um palmo à minha frente e atira-me com a trança, acertando em cheio na máscara com o cabelo e com o ponderado perfume floral. Os nossos olhos voltam a beijar-se antes de me virar as costas, exibindo os apetecíveis ombros nus.
“Estás tão perto, gatinha. Já sentes o meu calor? Eu sinto o teu. Encosta essa cauda em mim, e és minha.”
Agarro a anca magra assim que a sinto colar na minha. Ela olha para trás meio sobressaltada, acaricia a minha barba, diz qualquer coisa em espanhol e desaparece na multidão. O típico, portanto. Regresso à pista e à minha dança solitária. À minha volta multiplicam-se os beijos, apalpões e danças sensuais , num tesão coletivo que envolve todos os presentes. E eu aqui, com os azuis.
“Tu és o homem de ferro?”
À minha direita, um mimo de mulher agarra-me o braço e chega-se perto demais para o estado daquela maquilhagem preta e branca. Não consigo perceber a idade em anos, mas em whiskeys já vai seguramente para lá dos cinco.
“Sim, sou. E tu quem és?”
“Eu? Depois de ver o homem de ferro, eu não sou ninguém.”
Uma baboseira qualquer dita ao ouvido é o pretexto para a agarrar pela anca, e dançamos juntos no escuro. No meio da dirty talk habitual, chegamos à conclusão de que apoiamos clubes de futebol rivais. Ela agarra-me pela mão e leva-me a conhecer o resto do seu grupo, apontando para a amiga mascarada de pele morena e uma beleza simples, mas ternurenta:
“Ela é do Boavista.”
“Melhor do que ser do Benfica.”
À minha provocação foleira ela responde com um ar de escândalo dramático, desatando a correr em direção à saída, para desplante dos próprios amigos. De volta à pista, procuro Cláudia. Os olhos dela encontram-me, mas desta vez há um tipo moreno atrás dela. Ela vira-se para ele e ele rouba-lhe um beijo, ao qual a espanhola retribui de olhos colados nos meus.
Defendo a teoria de que cada noite nos dá um sinal, e apenas um, de que está na hora de meter a viola no saco. Se é verdade ou não, não sei; mas este sinal é dos óbvios. Agarro o telemóvel para chamar um carro, mas a merda do Face ID ainda não reconhece esta máscara. Várias rondas de luta de um cabrão contra a tecnologia e lá arranjo quem me leve, finalmente, a casa.
De Buddha na mão, vejo o sol nascer da minha janela enquanto rebobino mais um dos sonhos que se dão tão frequentemente na minha vida acordada. Quando dou por mim, prestes a entrar em reflexões perigosas sobre o porquê de eu conseguir estragar sempre tudo com as mulheres, concluo que é hora de dar por encerrado este Carnaval louco, que já vai tarde. É certo que ninguém leva a mal, mas também ninguém me paga para isto.
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