Malditos Blues
Já são quase horas de fechar, mas ainda bebia mais qualquer coisa. O bartender olha para mim e para o meu copo quase vazio, como quem “ou fazes o pedido ou te pões a andar”.
“Mais uma vodka?” pergunta finalmente.
Aceno com a cabeça e olho à minha volta. O bar está praticamente vazio. Fiquei eu, o bartender e um velho que está sentado a dois bancos de distância desde que cheguei. Estão a passar a “You Shook Me” dos Led Zeppelin: a guitarra reconfortante do Jimmy Page choca com a voz estridente e disruptiva do Robert Plant. Demasiadas emoções para quem está com os azuis, como dizem os americanos. E eu já estava com os azuis ainda antes de levar com seis vodkas em cima. O velho aproxima-se, como se alguém lhe tivesse perguntado, e começa a pregar:
“Esta não é nem das melhores músicas dos Led Zeppelin, nem das melhores músicas de blues.”
Concordo, mas respondo que sabe muito bem de ouvir em certos estados de espírito.
O velho continua o sermão: “Sabias que o blues foi inventado por escravos afro-americanos, raptados das suas terras, roubados das suas próprias identidades e obrigados a trabalhar durante uma vida inteira? Não só eles, mas também os filhos deles e os filhos dos filhos deles, durante gerações a fio. Estamos a falar de vidas, milhões de vidas condenadas ao cativeiro e à opressão, que encontraram na música um refúgio, um escape à triste realidade que os rodeava. No entanto aqui estamos nós, a ouvir quatro ingleses brancos a tocar o mesmo som. Irónico, não achas?”
Boa, um moralista. Era só o que me faltava. O trovão vocal do Robert Plant explode no sistema de som do bar e ataca diretamente o meu último neurónio funcional.
“You know you shook me, baby
You shook me all night long …”
O velho deve ter percebido que não me ia dignar a responder, por isso continua:
“Aposto que tu tens muitos problemas. O que se passa, o teu chefe trata-te mal? A mulher de quem gostas não quer nada contigo? Ou não gostas de mulheres e os teus pais não te aceitam?”
O velho dispara em todas as direções, típico dos psicólogos noturnos que normalmente se encontram em bares como este. Ouvido um, ouvidos todos. Projetam em mim os seus problemas e ainda ficam chateados quando percebem que me estou a borrifar. Mas a meio da missa dou por mim a dar-lhe a sua razão. Que problema pode ser grave o suficiente para justificar a destruição voluntária de um fígado? Podemos lamentar-nos quanto quisermos que a vida é uma merda, mas não são todas? Uma vida é uma vida, se é uma merda ou não só depende de quem a vive. A realidade é tudo o que nós quisermos, lembro-me de ler essa frase em qualquer lado. E tudo o que eu queria agora era uma cama.
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