Jogos Perigosos

Estou nas nuvens. À minha volta vejo enormes montanhas de algodão-doce em tons de laranja e lilás. Não vejo o sol, mas a sua luz dissipa-se por todo o cenário, pintando-o em tons de crepúsculo e aquecendo-me os chakras.

Vejo B sair de trás de uma nuvem e o meu coração pula.

"Sabes onde estamos?", pergunta-me.

"Sim, sei. Estamos num sonho."

"Então vem ter comigo."

B estende a mão na minha direção. Agarro-a e acaricio os seus dedos finos e compridos. A nuvem que nos suporta transforma-se num tapete mágico e voamos. Sinto-me tão feliz quando estou com ela, como se toda a minha vida tivesse sido um prólogo do momento em que a seguro nos meus braços. Perco noção do tempo em cima daquele tapete de algodão-doce, tanto podem passar minutos como anos. Quando dou por nós, sobrevoamos um imenso oceano sob a luz da Lua. Somos interrompidos por Hermes, que pousa atrevidamente no nosso tapete e diz apenas:

"Jogos perigosos."

Os deuses sempre tiveram tendência para o drama.

 

 ✯

 

Estamos debaixo de água e não sei para onde ir. Pelo menos esta cauda de sereia vai dar jeito, para começar. Reparo que B tem uma igual à minha, ao passo que J tem uma cauda de tubarão. Por momentos sinto alguma inveja e imagino como seria se ele tivesse um rabo de mulher. Deixo-me disso pois, agora mais do que nunca, preciso de bons amigos a meu lado. Sugiro que encontremos Poseidon pois ele saberá como sair daqui. Afinal de contas, ele já me ajudou antes.

O palácio de Poseidon é de uma imponência esmagadora. A dupla escadaria de mármore dá-nos as boas-vindas, conduzindo os nossos olhos através da fachada em direção às massivas colunas brancas que suportam o telhado. Observo a ornamentação em ouro, espalhada por toda a parte, na forma de todas as espécies que habitam o reino dos mares.

Onde as escadas se abraçam abre-se a porta de entrada, revelando Poseidon envolto numa bruma brilhante que emana de dentro do palácio. Apesar de estar a uns bons trinta metros de altura, oiço a sua voz como um tsunami que rebenta na minha cara.

"Não é suposto estarem aqui."

"Precisamos da tua ajuda." Tento esquecer o quão intimidado estou neste momento.

"Quem é que tu pensas que és para achar que podes aparecer no meu reino e fazer reivindicações? Não confundas a minha simpatia com amizade, rapaz - eu sou um Deus do Olimpo. OLHA PARA MIM!"

Um trovão ecoa pelos cinco oceanos e paralisa cada fibra do meu corpo. Tenho a certeza de que não me mexi; será que um mero pensamento é tão claro para um deus como as palavras ditas são para um ser humano? Oiço a voz de Poseidon, agora mais longe, enquanto mergulho num transe:

"Jogos perigosos."

Vejo três cordas: uma dourada e duas negras. Uma das cordas negras quebra-se e a outra torna-se dourada.

"Tu sabes de onde vêm as tuas dúvidas?"

"Do meu irmão gémeo." Respondo sem pensar, como se fosse óbvio.

"Sabes onde ele está?"

"Está neste mundo..."

"Tu sabes." O rei dos mares parece esboçar um sorriso sádico antes de apontar o seu tridente na minha direção. "Dentro de ti."

Sinto o metal afiado tocar-me no peito e vejo o meu coração dividido em dois: preto e branco. Yin e Yang.

"Ela vai ficar sempre ao teu lado e ele vai morrer por ti. Não precisas de o pedir." Poseidon dirige-se então a B.

"Ele vai fazer de tudo para te afastar. Não podes deixar."

Já tentei...

"E eu não deixei. Nunca vou deixar." B sorri enquanto me diz estas palavras. Parece-me que acredita realmente nelas.

"Não quero que ninguém morra por mim."

J responde que não é uma escolha minha.

 


 

Apanhamos o comboio ao som da Stairway to Heaven. Destino: Céu. Chegando à penúltima estação, um problema técnico interrompe a marcha e a música, obrigando-nos a sair no Purgatório.  Somos recebidos calorosamente pelo São Pedro.

"O que se passou com o comboio?"

"Só os deuses e os mortos é que podem entrar no céu. Vocês ainda não morreram."

"Isso significa que, para chegar ao céu, tenho de me tornar um deus... Tenho de matar o meu irmão gémeo?!"

"Jogos perigosos."

A voz de B é a última coisa que oiço antes de perder a consciência:

"Não precisamos de ir chegar ao céu"

 

Acordo com o sol a queimar-me a cara. Estamos no nosso terraço, muito melhor do que o céu alguma vez poderá ser. Oiço o Portão na piscina, a afogar-se. Talvez eu o tenha imaginado. Corremos na direção dele e ajudamo-lo a sair da água.

 

"Obrigado. Quem são vocês?"

Ele deve estar confuso pelo trauma. Tento ser paciente, a lucidez nunca foi um dos fortes do Portão.

"Tu sabes quem somos, estivemos contigo de férias." Ou melhor, tu é que vieste ter connosco.

"Esse não sou eu. Tu é que me chamaste 'Portão', eu nem tenho nome."

"É claro que tens um nome. Eu chamei-te 'Portão' como piada, mas tu és o... como é que ele se chama?"

B relembra-me o nome do Portão e eu decido batizá-lo. Molho a mão na água e toco-lhe na testa. Vejo uma luz prateada cobri-lo durante uma fração de segundo. O Portão olha para mim como se aquilo fizesse todo sentido.

"Já sabes quem nós somos?"

"Claro!" O tom em que me responde confirma que, agora sim, estou a falar com o Portão. Ele olha-me de alto a baixo com ar confuso, antes de continuar.

"Porque é que estás assim vestido?"

Não entendo o que ele quer dizer, talvez ainda esteja a sofrer do trauma? Vejo-o a apontar para mim.

"Com esse robe de messias e essa barba ... pareces Jesus Cristo."

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