Esparguete de Chumbo (Parte I)

“Hoje é o dia”. O Xerife reflete, enquanto ajeita o chapéu preto em frente ao espelho poeirento. A oportunidade de uma vida, de finalmente realizar a sua própria versão de destino manifesto. Após longos anos de serviço a partir da sombra, de meticulosas maquinações para preparar o caminho que agora se abre à sua frente, chega por fim a hora de o percorrer.

Dirige-se em passos lentos à praça central, inspirando a fundo a algazarra da multidão já reunida em torno do velho coreto. O silêncio abate-se sobre a praça assim que o aglomerado de olhos recai sobre o Xerife e na sua marcha em direção ao púlpito. 

“Meus estimados conterrâneos, sei o que estão a pensar. São raras as ocasiões em que nos reunimos todos aqui, mas garanto-vos que se vos convoquei é porque as circunstâncias assim o exigem. É com muito pesar no coração que vos trago esta notícia: o nosso querido prefeito faleceu ontem à noite, brutalmente assassinado na sua habitação particular. Posso dizer-vos que, em décadas de serviço público, nunca conheci ninguém com a amabilidade, a honestidade e o sentido de compromisso à nossa comunidade que tinha o Prefeito Cortéz. A sua falta será sentida até ao final dos nossos dias.”

O Xerife ergue ambas as mãos no ar, silenciando de imediato o murmúrio que começava a crescer entre a multidão, e continua:

“Quero deixar os vossos espíritos tranquilos: tenho os meus melhores homens dedicados a este caso. O responsável por este atentado hediondo será encontrado e trazido à Justiça para responder pelos seus crimes. A Justiça e a Lei são as nossas melhores conselheiras; elas alumiam o caminho quando as trevas da noite cegam os nossos sentidos.”

“Quem vai ser o próximo Prefeito?”

“Excelente questão, Mary Beth. Infelizmente, são muitos os casos em que a democracia é inimiga da expedição. E os tempos que vivemos são delicados. Dito isto, decidi aceitar sobre mim o sacrifício de atuar como prefeito interino. Pelo menos até termos a oportunidade de realizar um sufrágio propriamente dito.”

“Sacrifício? Não faças pouco de nós. Isto é uma jogada de poder.”

“Sei que tivemos as nossas diferenças no passado, Arthur. Sempre te viste como uma espécie de herói, e não tenho dúvidas que tenhas em ti algumas das qualidades necessárias para o ser. Mas temos de nos manter unidos em momentos como este. Para o bem da comunidade.”

“Nunca te aceitaremos como nosso líder, impostor. Sabemos bem quem é o responsável pel…”

*PLOW!*

O fumo preto, expelido do revólver dourado do Xerife, difunde-se no ar com o grito mudo da multidão.

“Tu não és o herói desta história, nem eu sou o vilão. Sou apenas um homem, um pecado mortal. A Lei é tudo o que importa e eu defendo-a com a minha vida. Os inimigos dela são meus inimigos, também. E eu sei que eles se escondem entre vós. Rebeldes sem causa exceto a anarquia e o caos. Servos de Lúcifer, inebriados por rituais satânicos e magia negra, que nada mais procuram senão o lucro fácil do crime. Devem ser parados! Devemos impedi-los de roubar os frutos do trabalho árduo da nossa gente. Essa é a minha missão.”

O Xerife faz uma pausa e observa os olhares apavorados que o fitam em silêncio. Tem-nos exatamente onde quer.

“Eu sei que muitos têm simpatia por estes delinquentes. Alguns de vós até os ajudaram, estou ciente disso. Aquele que rouba o ouro é tão culpado aos olhos da Lei como quem o ajuda a esconder-se. Mas um bom líder deve ser misericordioso: quero garantir-vos que todos os que cooperarem com a autoridade serão perdoados pelos crimes do passado. Entreguem-me a Dama das Sete Mortes e o seu gangue de delinquentes, e eu certifico-me que serão ricos até ao fim das vossas vidas.”

O Xerife enterra o chapéu na cabeça calva, e os seus olhos pousam brevemente no corpo caído uns metros à frente. Um sorriso, num tom de dourado sádico, rasga crateras na sua pele queimada.

“Isto não é um sonho; eu não sonho. É o início de uma nova era na nossa história, uma era de gloriosa evolução. Sejam bem-vindos à vossa nova realidade.”

 

 

  

PROCURADA: “Dama das Sete Mortes”

RECOMPENSA: $10.000

 

Pelo canto do olho reparo que J se aproxima.

“O que temos hoje?”

“Uma caça à recompensa” respondo, apontando para o cartaz afixado num poste velho à saída da delegacia do Xerife.

“Parece interessante. Por onde começamos?”

“Um tipo no saloon disse que viu um grupo de aspeto duvidoso, umas milhas a norte da vila. No entanto, ele já ia com sete cervejas em cima. E eu ainda tive de lhe pagar mais três para o fazer falar.”

“Melhor do que nada.” Um sorriso malandro escapa da boca de J. “Recrutei mais um membro para o nosso gangue: chama-se Nélio e é o meu lacaio.”

“Desde quando é que tens um lacaio?”

“Desde sempre. Infelizmente, a pontualidade não é um dos seus pontos fortes. Vamos andando, ele que nos encontre pelo caminho.”

Mas que raio de nome é Nélio? Não interessa, toda a ajuda é bem-vinda para levar a cabo esta missão. A Dama é uma figura consagrada da mitologia local, reconhecida pela sua pontaria implacável mesmo a distâncias que desafiam as leis da física. A origem do nome vem de um assalto a uma das maiores reservas de ouro a oeste do Mississipi. Reza a lenda que com uma só bala limpou sete segurança, escapando ilesa … e rica. O resto é história, contada com um entusiasmo ébrio em todos os saloons das redondezas. Até há quem diga que todo o ouro foi doado a uma igreja conhecida por ajudar mães viúvas. Amada pelo povo, odiada pelos poderes constituídos. Onde é que eu já vi isto?

Em condições normais eu estaria do lado da Dama: a rebelde solidária que ilude a Lei como o escaldante sol das doze no meio do deserto. Mas vivemos tempos difíceis. Já tivemos os nossos desentendimentos com as autoridades, suficientes para perceber que não temos o talento da Dama para ludibriar os homens do Xerife. Agora temos a rédea curta: ou colaboramos, ou vamos ver o sol nascer aos quadradinhos. Para além de que o altruísmo não enche o estômago, como o Fenómeno faz questão de me relembrar. Agarro a última maçã do fundo do alforje e ofereço-a ao meu fiel companheiro de viagem, que a devora num piscar de olhos.

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