Esparguete de Chumbo (Parte III)
Os pontapés inúteis da Dama esbarram contra o traseiro do cavalo, enquanto a sua cabeça abana a cada passo excessivamente dramático do animal. J vira-se para Nélio e faz uma cara de resmunguice jocosa:
“Que belo serviço. Quantas vezes já te disse para não mexeres em dinamite sem a minha autorização? E agora, como voltamos para a cidade?”
“Talvez devêssemos ouvir o que ela tem para dizer? Pode ser que conheça um caminho alternativo.”
A sugestão de Nélio diz tanto sobre o seu bom coração como sobre a inocência do miúdo. Mas suponho que mal não possa fazer; afinal de contas ela continua de mãos e pernas atadas. Desvendo a boca da Dama e ela inspira longamente, antes de vociferar:
“Idiotas, soltem-me já! Estão a cometer um erro terrível.”
J desvia-se de um dos pontapés da Dama e dá uma palmadinha afetuosa no seu Diego. O animal responde abanando o traseiro e a Dama, para risada do seu dono.
“Poupa-nos às tuas lamúrias. Aconselho que as guardes para o Xerife, tenho a certeza que ele vai adorar ouvi-las. Agora, tu vais dizer-nos como é que saímos daqui. Temos uma recompensa à nossa espera.”
“Deves sentir um grande orgulho por trabalhar para esse tirano. Nem consigo perceber se és burro, ou apenas ingénuo. Será que acreditas mesmo que a tal recompensa vai estar à tua espera quando regressares?” O Xerife vai descartar-te assim que conseguir o que pretende; como já fez com centenas de capangas ainda mais reles do que vocês.”
A Dama cospe no chão; as palavras escorrem dos seus lábios vermelhos entranhadas num fel profundo. O seu ódio injeta em mim uma necessidade incontrolável de justificar as nossas ações:
“Não somos escravos de ninguém, a não ser de nós mesmos. Entendo perfeitamente a atração romântica pela vida de fora-da-lei, essa também já foi a nossa realidade. Mas o mundo está em constante mudança, e nós tivemos uma escolha a fazer: mudar com ele, ou bater a bota.”
A Dama olha-me de alto a baixo. “E tu quem és, uma espécie de bardo?”
“Infelizmente, tenho ainda menos talento para o alaúde do que para o revólver. Mas gostei da tua descrição.”
“Não era um elogio.” A Dama deixa escapar um olhar apático na direção de Nélio. “Vocês não parecem ser maus tipos. Por que raio estão a ajudar o Xerife a escravizar o meu povo?”
“O que queres dizer com isso?” O revólver e a sobrancelha arqueada de J examinam a Dama, que solta uma gargalhada sincera.
“Ingénuos, portanto. Não fazem ideia da pessoa com quem estão a lidar. Desde o momento em que o Xerife pôs os pés na cidade que a nossa vida mudou para sempre. O Prefeito Cortéz era bom homem, mas um tolo. Confiou na lenga-lenga do Xerife sobre a Lei e a Justiça e fechou os olhos ao abuso de que o seu povo era vítima. O dia em que lhe colocou aquela estrela dourada ao peito foi o dia do primeiro desaparecimento misterioso, que se foram multiplicando nos anos que se seguiram. Para onde levavam as pessoas? Ninguém sabia. A identidade do raptor? Nunca foi conhecida, apesar da fervorosa perseguição aos chamados ‘criminosos’ e ‘delinquentes’ – isto é, todos os que questionavam abertamente os métodos do Xerife.”
“Tens alguma prova do que estás a dizer?”, questiono.
“Eu não preciso de provas, forasteiro. Esta é a minha terra; luto por ela desde que as minhas mãos são grandes o suficiente para segurar a espingarda.” O peito da Dama enche-se de um orgulho insurreto. “Certa noite, peguei em alguns dos meus melhores homens e seguimos o Xerife até uma propriedade remota, umas trinta milhas a oeste da cidade. Atrás dele, uma carruagem preta com umas vinte pessoas empacotadas lá dentro. A procissão chegou ao fim num armazém abandonado ao lado de um morro, todo esburacado como se fosse um queijo. Qual não foi a minha surpresa ao ver os meus conterrâneos serem arrastados para fora da carruagem em direção ao velho armazém! Acorrentados e cabisbaixos, condenados a uma vida de trabalho nas minas. E isso nem foi o pior que vi naquela noite.”
A história da Dama não conhece altos e baixos; conduz-nos como um vagão sobre carris que nunca param de subir.
“De alguma forma, o Xerife apercebeu-se da nossa presença. Só que os homens dele não eram de carne e osso, mas sim de ferro; completamente imunes às nossas balas. Fomos perseguidos dali para fora por carruagens rugidoras, puxadas por cavalos invisíveis. O velho armazém cuspiu bolas de fogo gigantes sobre nós, rasgando o céu negro num espetáculo visual tão belo como sádico. Perdi bons amigos nessa noite. A última coisa que vi, espreitando pelo enorme portão do armazém, foi um par de olhos vermelhos que me seguiu até ao horizonte.”
Onde é que nos viemos meter? Solto um suspiro, mal sabendo que a resposta a essa pergunta estava prestes a tornar-se ainda menos óbvia.
*GRRRRRRRRRUUMMMMMMMMMMMM!”
Seis olhos procuram imediatamente Nélio.
“O que foi? Desta vez não fui eu ...”
O som metálico volta a varrer o topo do desfiladeiro, desta vez prolongando o horror por mais uns segundos. Quando os meus olhos se ajustam ao contacto direto do Sol, aquilo que vejo faz-me questionar se estou mesmo acordado. Esfrego a cara várias vezes, para me certificar que não estou a ser vítima de uma cruel miragem. Uma colossal águia de ferro pousa no cimo do rochedo! As suas asas hirtas, abertas para cada lado, dão à monstruosidade um aspeto ainda mais ameaçador. A cabeça é seguramente maior do que um cavalo adulto; e os olhos, vermelhos como rubis, fitam-nos com a paciência de um assassino.
Da cabeça da água rola uma escada de corda. Atrás dela sai o Xerife, que traz na mão direita o maior chifre de bisão que alguma vez vi. O Xerife fala para o chifre, e este grita-nos ao ouvido:
“Bravo, excelente! Agora, entreguem-me a Dama e eu trato do resto.”
J aclara a voz, tentando disfarçar o medo que todos sentimos:
“Precisamos de ajuda para sair daqui. E queremos a nossa recompensa, primeiro.”
O Xerife responde à afronta de J com um esgar indefetível, expondo o brilho velho e doentio da dentadura de ouro.
“Rapaz, a tua recompensa são os anos que te vou permitir viver. Ponham-se a andar daqui e nunca mais voltem à minha cidade. Faz o que te mando porque não vou voltar a falar.”
“Eu já me estava a perguntar quando é que te calavas.” O sorriso desafiador de J é cortado abruptamente por um eclipse solar, que dura apenas uma fração de segundo. Um assobio desumano precede o mergulho felino da águia, de bico apontado diretamente a nós. Atropelamo-nos para trás das rochas mais próximas antes de sermos projetados por uma rajada de pó. A besta metálica voa para fora do desfiladeiro e paira no ar, parecendo degustar momentaneamente o nosso terror. Depois, abre fogo. As balas que dispara através dos olhos não são projéteis, mas também não é fogo. É uma espécie de feitiço de sangue supersónico, que deixa crateras de cinza e fumo em tudo o que toca.
“Soltem-me, rápido! Temos de correr até à gruta.”
Seguimos a dama, atravessando toda aquela planície de areia sob o olhar rapinante do Xerife. Ao entrarmos na gruta, a Dama aponta para uma rudimentar roldana em madeira:
“Ajudem-me aqui, despachem-se!”
O mecanismo desencadeia uma série de cliques e cranques que culminam na derrocada de pequenas pedras, bloqueando a passagem.
“Não podemos ficar aqui. Há mais alguma saída?” A pergunta de J faz com que os nossos olhares recaiam na Dama.
“Haver, até há. Mas não a podemos usar enquanto o Xerife estiver por perto, ou ele vai ver-nos e estaremos mortos de qualquer maneira. Temos de esperar que ele vá embora.”
“E quem te diz …”
Ouve-se mais uma explosão atrás de nós, desta vez provocando uma segunda derrocada. Ao fundo da gruta abre-se uma clareira, e a luz do sol revela-nos a ilusão da nossa última esperança.
“Oh não.”
A Dama solta um suspiro premonitório, antes de vermos uma pequena bola dourada ser atirada para dentro da gruta por uma mão invisível. Segundos depois dá-se nova explosão, que deixa um som tão agudo e demoníaco que se cola aos nossos tímpanos e atordoa todos os nossos sentidos. Através de um mar de lágrimas, avisto milhares de pirilampos que emanam do extraordinário objeto e se espalham por toda a parte. A minha cabeça aterra com a leveza de uma pluma, enquanto observo os meus companheiros rebolar no chão em agonia e agarrados aos ouvidos sangrentos. Estudo os seus gritos mudos enquanto os pirilampos nos envolvem completamente num teatro de luz. Penso que tudo aquilo é de uma beleza transcendente. Nos meus últimos momentos, permito-me o conforto de esquecer o facto de que estamos todos condenados.
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