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Interlúdio

Por esta altura, já deves perceber mais ou menos o que se passa aqui. Senão, deixa-me pintar-te o Picasso. Este é um conto de contos, um sonho de sonhos. Uma história, um sonho, uma vida: qual é a diferença, afinal? Não existe uma sequência cronológica, porque afinal de contas o tempo é uma construção humana, criada para que possamos manter a ilusão de que temos algum controlo do que se passa à nossa volta. Passado, presente e futuro. Um ponto e vírgula e pêras. Substitui-se a mentira da ordem temporal pela vontade de contar uma história; a mais incrível, caótica e baseada em factos irreais que vivi em qualquer uma das minhas vidas. Desabafei contigo, fiz-te perder o teu tempo. Contei-te os meus sonhos, mas vivi tantos mais. E o melhor ainda está para vir, não gostamos todos de acreditar nisso? Não me lembro de muitos e alguns até fiz por esquecer.   Mas falhei. Aquilo que mais quis agarrar escapou-me por entre os dedos; o que mais quis evitar persegue-me como uma sombra. Não i...

Ninguém Leva a Mal

A Lua já espreita por entre as nuvens escuras que ameaçam estragar as festividades. Milhares de caras mascaradas desfilam pela cidade: a noite perfeita para um cabrão sair à rua sem dar nas vistas. O único que repara em mim é um mendigo, que elogia a máscara antes de cravar uma moeda. Abro a carteira cor de camelo “porque hoje é Carnaval, e até elogiaste o meu disfarce.” Entro num bar quase vazio e peço uma cerveja, da qual metade cai às mãos de uma loira que veio de turista nórdica e esbarra contra mim assim que viro costas. Um bom presságio, sem dúvida. Saio do WC frustrado, após esforços infrutíferos para tirar a nódoa, e dirijo-me novamente à rua. Aproximo-me do careca cúbico à porta do Plano B, sondando pelo preço da entrada. Ele olha-me de alto a baixo com desprezo, virando-se de seguida para um grupo de cinquentões com aspeto fino. Depois de lhes abrir passagem com uma cordialidade exagerada, responde sem olhar para mim: “Pela entrada são dez paus. E tens de tirar a máscara.”...

Esparguete de Chumbo (Parte III)

Os pontapés inúteis da Dama esbarram contra o traseiro do cavalo, enquanto a sua cabeça abana a cada passo excessivamente dramático do animal. J vira-se para Nélio e faz uma cara de resmunguice jocosa: “Que belo serviço. Quantas vezes já te disse para não mexeres em dinamite sem a minha autorização? E agora, como voltamos para a cidade?” “Talvez devêssemos ouvir o que ela tem para dizer? Pode ser que conheça um caminho alternativo.” A sugestão de Nélio diz tanto sobre o seu bom coração como sobre a inocência do miúdo. Mas suponho que mal não possa fazer; afinal de contas ela continua de mãos e pernas atadas. Desvendo a boca da Dama e ela inspira longamente, antes de vociferar: “Idiotas, soltem-me já! Estão a cometer um erro terrível.” J desvia-se de um dos pontapés da Dama e dá uma palmadinha afetuosa no seu Diego. O animal responde abanando o traseiro e a Dama, para risada do seu dono. “Poupa-nos às tuas lamúrias. Aconselho que as guardes para o Xerife, tenho a certeza qu...

Esparguete de Chumbo (Parte II)

"Já cavalgamos há horas. Percorremos tudo o que era casa, saloon e bordel das redondezas. Ninguém sabe do paradeiro da Dama.” A frustração de J começa a transparecer do seu tom de voz. O “clack-clack” metálico ecoa nas enormes paredes de pedra côr-de-laranja que nos cercam por ambos os lados. O sol, como sempre, abrasador. Puxo a frente do meu chapéu para baixo antes de responder: “Quer dizer, houve aquele tipo, na fazenda logo à saída da cidade, que disse que o gangue não era visto por aqui há anos.” Ignoro o olhar de tédio impaciente que J me lança e continuo: “No fim deste desfiladeiro há uma gruta, deve ser logo a seguir a esta passagem estreita. Se eles não estiverem lá … talvez se tenham evaporado?” “Parados aí!” uma voz irrompe à nossa frente, seduzindo os nossos olhos na direção de uma mulher esbelta, num fato de couro branco com chapéu a condizer. Mais de vinte homens revelam-se dos seus esconderijos e dão-nos as calorosas boas-vindas de espingarda em punho. “Desmo...